23/10/2014

[Crônica] Pedro e o Sofá

Pedro é um trabalhador e pai de família. A breve narrativa a seguir descreve um dia corriqueiro em sua vida.




São seis horas da manhã em ponto. O alarme do celular começa a tocar conforme o programado. Pedro dá um salto da cama e corre ao banheiro. Após se aliviar, escovar os dentes e se arrumar, agora se dirige à cozinha. Sua esposa, Lúcia, que acordara meia hora antes, já havia preparado o café. Pedro arrasta a bruscamente a cadeira e se senta para tomar aceleradamente seu café-da-manhã.

- Não entendo o motivo de se escovar os dentes antes do café. Do que adianta? - retrucou a esposa.

- Isso é um comportamento automático, querida. Cresci com esse padrão. Agora me deixe tomar o café pois já estou me atrasando.

Em menos de dois minutos, Pedro já havia engolido o pão francês com manteiga e seu copo habitual de pingado. Levantou da cadeira, voltou ao quarto, pegou a chave do carro e correu para dar partida no seu popular.

Enquanto percorria até o seu trabalho, preocupações sondavam a mente do pai de família. Seu salário apertado o sufocava e mal dava para pagar o financiamento do carro, aluguel da casa e as contas básicas como luz, água, internet e supermercado. Mesmo formado, Pedro percebera que diploma de ensino superior não valia mais do que antigamente e seu sangue ferveu ao lembrar do seu irmão, que mesmo só estudado até o Ensino Médio, tinha uma empresa de informática e lucrava o dobro, ou mais, do que ele.

"Essas faculdades de hoje só pensam no lucro. Diploma virou apenas negócio."

Tal frase martelava em sua mente há tempos.

Pontualmente chegando na empresa, Pedro é abordado pelo seu chefe.

- Sabemos que você pode mais que isso, Pedro.

- Sim. - respondeu com certo tom de irritação.

- Os lucros da empresa caíram mês passado e precisamos recuperar agora. Para isso vou precisar que você faça hora extra e venha trabalhar aos finais de semana. A empresa precisa e você e você dela.

- Aproveitando, Geraldo, eu preciso de um pequeno aumento de salário. Estou meio no vermelho, sabe? Não estou dando conta de pagar as prestações do meu carro, minha conta tá negativa e correndo juros bancários e estou tendo de negar guloseimas que meu filho pede no mercado...

- Tudo virá no tempo certo, Pedro. Você faz um grande trabalho e um dia será recompensado. Pode ter certeza disso.

Ao sair da vista do chefe, Pedro deu um suspiro que misturava ódio e desesperança. O tal "tempo certo" vem saindo da boca de seu chefe há quase dois anos.

Na hora do almoço, na parte externa da firma, Pedro senta-se ao lado de seu melhor colega, Thiago, às sobras de uma grande e bela árvore.

- Sabe, Thiago, a vida é uma grande merda!

- O que aconteceu desta vez?

- Às vezes me pergunto se somos humanos mesmo ou robôs de carne e osso. Parece que nossa vida é destinada a cumprir padrões desde o momento que nascemos. Padrões naturais e outros padrões que se tornaram naturais. Temos de estudar, se formar, trabalhar, se casar, ter filhos, envelhecer e morrer sem, ao menos, fazer algum feito importante. Nossa existência pode ser comparada com a de uma barata ou qualquer outro bicho asqueroso.

- Que isso, Pedro. Pensar deste jeito não vai te ajudar em nada.

- Aceitar tudo isso também não vai, parceiro. Estou de saco cheio deste lugar. Os donos enxergam nós como simples máquinas de dar lucros. Eles adoram cobrar prontidão de nossos deveres, mas essa mesma prontidão não existe quando pedimos nossos direitos.

- Qualquer empresa é assim, cara. A gente pode encontrar um dom ou abrir um próprio negócio. Nada melhor do que a gente ser o chefe.

- É tão fácil que 95% da sociedade não consegue chegar nesse ponto. Abrir algo demanda muito dinheiro e não consigo poupar ganhando tão pouco e tendo tantas dívidas. É um buraco sem fundo.

- Vamos parar de pensar assim. Otimismo. Vamos tocando dia após dia com determinação que chegaremos a conquistas nossos sonhos!

- Credo, Thiago. Você está parecendo nosso chefe. É assim mesmo que o topo da pirâmide quer que a gente pense.

Terminado o horário do almoço, nosso pai de família trabalha o restante do expediente com a cabeça bem longe dali.

- Querido, isso são horas?

- Não me enche, Lúcia.

- Lúcia? Você nunca me chama pelo nome, o que está acontecendo?

- Trabalharei fora do horário durante esse mês todo. Para variar a empresa teve lucros reduzidos e nós, os peões, teremos de nos matar para enriquecer ainda mais o dono daquela merda. Enquanto isso, aqui estou nessa merda de vidinha padrão, mal conseguindo pagar as contas em dia. Cadê minha vida social? Na lata do lixo!

- Merda de vidinha padrão? Você está me ofendendo, seu grosseiro!

Pedro acenou negativamente com a cabeça e se esticou no sofá da sala.

- Todos nós vivemos numa merda de padrão. Não se ligou que somos instrumentos de lucro dos políticos e empresários? Temos de produzir, produzir e produzir e aceitar migalhas em troca. Grande partes das migalhas vai para pagar impostos ao governo... E cá estamos, endividados e numa vidinha medíocre.

- Ao invés de ficar se lamentando poderia fazer acontecer. Buscar mudanças... Mas prefere ficar aí relinchando. Na hora que você entrar em depressão quero ver...

- A vida já é uma depressão, amor. Cadê o Michael?

- Foi na festa da aniversário do filho do nosso vizinho Otávio.

Lucia sentou-se no outro sofá e apanhou o controle remoto. Estava na hora de sua novela.

- Não sei como você gosta de assistir essas porcarias.

- Nossa, fique na sua e pare de pegar no meu pé.

- Já parou de pensar que está sendo mais uma marionete do padrão de vida social? Você só assiste essas porcarias de novelas, programas de fofocas e ainda acessa a internet para também ver fofocas. O que a vida de pessoas ricas possui a ponto de deixar pessoas como você tão obcecadas por elas? Enquanto esses famosos estão ricos e sequer sabendo de sua existência, você fica babando ovo pra eles. Lamentável.

- São pessoas famosas e ricas, infelizmente ao contrário de você, Pedro. Você é tão acomodado que reclama da porra de seu trabalho todo o santo dia, mas não vai atrás de coisa melhor. Um banana. Foi com isso que me casei, um banana!

- Não temos nada a mais do que a necessidade de buscar uma contínua evolução através do conhecimento. Somos reféns desse sistema, Lúcia. 95% dos homens são bananas. Não temos como escapar. Ficar o dia inteiro cuidando da vida de pessoas que sabem que você existe é o cúmulo do ridículo.

- Assim que eu conseguir matricular o Michael na escolinha, irei procurar um emprego. Você exagera, Pedro. Me ofende.

Àquela altura, Lúcia perdera a vontade de assistir sua novela e saiu batendo os pés em direção ao quarto. Minutos depois, Michael apareceu na porta guiado pelo vizinho. Pedro e Otávio trocaram breves cumprimentos e logo se despediram.

- Oi papai!

- Oi filhão! Como foi seu dia?

- Foi legal. Cadê a mamãe?

- Já está dormindo.

- Papai, estava conversando com outras crianças... Vai demorar muito para eu virar adulto?

- Torça para que sim, meu lindo. Se pudéssemos, todos nós, os adultos, viveríamos a magia da infância para sempre. A vida adulta é um saco. É quando se torna adulto que o mundo fica menos colorido. Então trate de aproveitar essa infância ao máximo, campeão!

- Tá bom, papai. Vou deitar com a mamãe.

- Tudo bem, boa noite! - disse acariciando a cabeça do filho.

- Você não vem?

- Não. Papai vai dormir aqui no sofá hoje e não vai ser agora.

"Não gosto de dormir cedo. Já passo a maioria do tempo trabalhando e dormir seria encurtar ainda mais minha vida social, mesmo que esta não seja algo considerado como excepcional. Esse manual da vida, com direitos e deveres, esse show de padrões que afunda a vida de qualquer ser que seja, propriamente, racional deveria ser queimado. As pessoas gostam de apontar o que podemos ou não fazer, como se fossem donas de nossas vidas. Se tem algo que concluí nessa vida é que isso de "certo e errado" é totalmente relativo. Talvez deveríamos a cultivar mais o amor por nossas pessoas queridas, embora a vida não seja muito virtuosa nesse setor, também. Desde cedo somos obrigados a conviver com a saudade de pessoas queridas que se vão e logo, quando partirmos, também deixaremos as pessoas nos amam com saudade. A aceitação é uma estratégia deprimente de vida, porém necessária. Existe uma força maior que nossos anseios. Uma força que não dá trégua e que nos rebaixa a meras peças de um tabuleiro chamado existência. Peças estas que são frequentemente trocadas ao longo do tempo. Com o tempo aprendi que sou insignificante demais a ponto de querer rotular, julgar ou apontar o dedo para outras pessoas. Toda essa subjetividade não faz sentido algum. Sei que dias, como o de hoje, se repetirão e talvez eu não seja forte o suficiente para correr de tal acomodação, mas me dou o direito de conviver com essa realidade que me dá o dever de não me entregar às futilidades como a maioria das pessoas. Boa noite a todos!"

Após fazer tal publicação, Pedro fechou seu notebook e ficou inerte, deitado e olhando para o teto, esperançoso que o sono o acometeria em instantes. Sentiu-se mais confortável após o desabafo. Como o sono não veio, minutos depois abriu novamente o notebook e navegou até seu perfil na rede social. Um amigo tinha comentado o seu texto.

"É meu caro amigo. . . O excesso de realidade corrói a alma de uma pessoa. Tenha uma boa noite, também! Abraços!!!"

Algumas lágrimas correram por suas bochechas. Nem o próprio Pedro sabia ao certo quais os sentimentos passavam por sua mente. Mais uma vez sentiu-se como um cisco diante do tamanho do universo e da existência. A única certeza que tinha é que, por mais tempo que vivesse, muitas perguntas ficariam sem respostas.


"Decifrar a vida é o melhor caminho para a insanidade. Agora sim, boa noite!" - treplicou.

Demorou mais alguns minutos conseguir pregar os olhos. Mais um dia da vida de Pedro chegava ao fim. Os dias poderiam acabar, mas as incertezas jamais.






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